Desculpa esfarrapada
Sábado à noite, a TV a cabo, por algum motivo misterioso, sintoniza-se por conta própria naquele filme gostoso de ser assistir com preguiça. Lá fora, a chuva fina convida o cobertor a namorar a pipoca quente sob o sofá macio. Tudo perfeito, não fosse o convite para comemorar o aniversário do concunhado em um barzinho sen-sa-cio-nal, com direito a voz e violão interpretando todos os melhores sucessos da Música Popular de Elevador.
Um comichão começa do lado esquerdo do peito, onde os cientistas já comprovaram ser a região responsável consciência pesada. Claro, a cura imediata para o problema seria levantar, esquecer o filme, vestir roupas compatíveis com uma expedição para o Everest e curtir a valer aquela versão de “Monalisa”, do Jorge Vercillo, cuja existência é lembrada apenas pelos cantores de bar. Mas, como nos ensinou o velho Sidarta, há o caminho do meio. A solução que evitará o constrangimento de recusar o oportuno convite do concunhado e, ao mesmo tempo, deixará aproveitar a companhia da pipoquinha com cobertura de lã de carneiro.
Eis o momento quando a cabeça se contorce na busca da desculpa perfeita. O Santo Graal de todos os aqueles que não compram presente de aniversário para a namorada, faltaram a aula de inglês para ficar jogando Civilization ou perderam a hora no trabalho, após serem seduzidos um milhar de vezes pela função soneca do celular. Pois, arrumar desculpa é uma das mais difíceis artes do manual da cara de pau social. Ela deve ser algo cuja ocorrência é provável, mas, ao mesmo tempo, inesperada. Um evento crível, sem perder o caráter de surpresa, típico do anedotário do cotidiano extraordinário. Verdade que há desculpa pronta para uma série de situações. Ao atraso, entrega-se sempre o trânsito, o grande vilão das metrópoles. Às dores de cabeça noturnas (“essa sinusite ainda acaba comigo”) são escusas aos compromissos desagradáveis. Já a falta tempo para protelar qualquer obrigação advogada pelo superego, mas há muito jogada para o último grau de prioridade pelo id.
O problema é que dar desculpa, como qualquer coisa que exija alguma arte, no começo é difícil, mas, depois de algumas poucas vezes, já se entranha na pessoa e vira hábito. A partir de então, o sujeito fica desleixado com a vida, na crença que, qualquer coisa que aconteça, uma desculpinha livrará a situação. Passa a ser um desculpeiro, uma espécie que, eu garanto, qualquer leitor é capaz de identificar um ou dois em seu circulo de amigos imaginários.
Assim, se não há como viver na utopia de um mundo de sinceridade completa, também não nos deixemos seduzir pelo comodismo da auto condescendência. Pois, no processo de jogar na turma que te espera ao som do Jorge Vercillo a culpa pela noite estragada, a desculpa só tem o objetivo de tirar de nós o inexplicável peso que há na insistência de ser honesto consigo mesmo. Portanto, da próxima vez que o telefone tocar, seja sincero e diga “hoje não dá, preciso aguar meu canteiro de alecrim”. Afinal, desculpa para ser rabugento não existe.
P.S.: Sim, este texto surgiu enquanto eu buscava uma desculpa para não ter publicado nada semana passada.